sexta-feira, agosto 26, 2005

Ouvindo além

A porta se abre. Eu corro e com um pulo já estou dentro do ônibus, que, por incrível que pareça, está relativamente vazio, não um vazio ao ponto de que todos os passageiros possam se sentar. Mas lá estou eu, grudada à porta com os olhos baixos. Literalmente na minha, quando me dou por surpreendida por uma voz que insiste em sobresair às demais.

Um rapaz alto, magro e repleto de piercings (sobre os quais não consigo precisar a localização). Ele dialoga com uma senhora velha, tipicamente velha. O rapaz relatava sobre o período em que esteve em um presídio. (O interessante é que relatos deste tipo já me ocorreram em ônibus). Discorrendo entre estórias como a tentativa de matá-lo à chave de fendas enquanto dormia, e ele reagindo matando o agressor com uma peixeira, passando por explanações acerca da aparição do Satanás que lhe surgia na forma de uma linda mulher que engrossava a voz na medida que com ele conversava, algo do que ele disse verdadeiramente me marcou. A discussão se dava permeada por expressões teológicas, a cada duas frases um Graças a Deus! era proferido. O que à primeira vista, e de fato o era, parecia uma conversa a tons elevados decidida a chocar as pessoas que ali se encontravam e, que normalmente, eu não perderia meu tempo prestando atenção, exerceu em mim mais do que um choque.

" No meio da minha cabeça tem uma cruz que foi feita a navalha." Eis a frase que me despertasse para aquele papo. O que me intrigou não foi a realidade ou toda profundidade da frase, mas sim a sua poesia. Até então, aquela conversa marcada por expressões sociais não parecia querer mais do que chamar a atenção para si. O linguajar cotidiano e a subjetividade de cada interlocutor pareceu se desfazer. No entanto, a frase à mim se apresentou de uma maneira paradoxal. Ao mesmo tempo em que ela me despertou para conversa ela também me expeliu, fazendo com que eu só fixasse à minha atenção na sua poesia. E como era linda sua poesia.

A porta se abriu.

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