Martha Medeiros
"A civilidade nos integra à sociedade, mas há momentos em que é preciso deixar transparecer a alma do jeito que ela é, sem amarrasEm 1915, Fernando Pessoa incorporou seu heterônimo Álvaro de Campos e escreveu uma carta a Walt Whitman chamada Saudação. Em meio ao texto, entusiasmado com as próprias palavras, pediu licença ao destinatário para abrir o colarinho e tirar a gravata antes de continuar: "Não se pode ter muita energia com a civilização à roda do pescoço". Livre da gravata, seguiu escrevendo com o vigor com que estava tomado.
Considero a gravata um objeto de fetiche. Prefiro os que usam camiseta, mas um certo dia os rapazes casuais surgem de terno completo e avista-se uma nova possibilidade de homem. Divagações. Não me dê a menor atenção, pois não é este o assunto da crônica. O que eu quero falar é sobre essa história de civilização à roda do pescoço, que serve como metáfora para gravatas e para tantas coisas mais. A civilidade nos torna bastante apresentáveis e integrados ao nosso meio, então ela está sempre nos acompanhando, seja no vocabulário que usamos, seja nos nossos modos ou na nossa capacidade de engolir sapos e relevar grosserias: somos polidos, não há dúvida. É uma excepcional qualidade. Mas também é inegável que isso nos rouba alguma energia em horas vitais. Ser passional, vigoroso, arrebatador, acalorado, nada disso é possível quando se tem a civilização ao redor do pescoço, física ou metaforicamente falando.
Em horas extremas, exige-se nudez - física ou metafórica, de novo. É preciso o mínimo de impedimento para gestos ousados, o mínimo de autocensura para falar o que se pensa, o mínimo de controle para demonstrar o que se sente. Há sempre um momento na vida - quisera fossem muitos - em que é preciso despir-se da nossa pele de cordeiro e deixar transparecer a nossa alma do jeito que ela é, e às vezes nem sabemos ao certo como ela é, tão pouco nos enxergamos por dentro. A adestração faz parte da nossa educação, mas como nos descaracteriza. De vez em quando é preciso dar uma folga à nossa civilidade. Não há como não arrancar a gravata e jogar longe o salto alto na hora de fazer declarações de amor, confessar pecados grandes, sair em busca de um novo caminho pra vida, escrever poemas com a dor da perda ainda latejando.
Não há como não tirar o batom na hora do beijo, soltar os cabelos na hora do sexo, arregaçar as mangas na hora de um abraço forte. Durante emoções estupendas, nada pode nos apertar, nos constranger, nos segurar. São ocasiões raras em que não se deve ter compromisso algum com a vaidade. Aliás, somos insuportavelmente belos ao nos desamarrarmos, aos nos livrarmos de nossos pudores, ao arrancar os óculos do rosto para deixar que vejam nossos olhos, sejam eles claros, escuros ou vermelhos - todos já tivemos os olhos vermelhos.
Fernando Pessoa não conseguia continuar escrevendo o que escrevia para Walt Whitman estando de gravata. Sentia que perdia sua força justo quando esta lhe era mais necessária. Suas palavras exigiam liberdade para continuarem significativas, era imperioso ter mais fôlego, talvez até um pouco de selvageria - e ele não pensou duas vezes: adeus, gravata. Era 1915, quando homens sem gravata não eram nem cumprimentados na rua. Mas em nome da sua arte e das exigências da sua alma, ele pensou: dane-se. Estava certo. Para a alma vazar, o corpo tem que abrir espaço. "
Jornal Zero Hora - 08/01/06
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