quarta-feira, novembro 15, 2006

A paixão segundo GH - Clarice Lispector


Título: A Paixão Segundo G.h.

Autor: Lispector, Clarice

Editora: Rocco






Sinopse:
Romance original, desprovido das características próprias do gênero, A paixão segundo G.H. conta, através de um enredo banal, o pensar e o sentir de G.H., a protagonista-narradora que despede a empregada doméstica e decide fazer uma limpeza geral no quarto de serviço, que ela supõe imundo e repleto de inutilidades. Após recuperar-se da frustração de ter encontrado um quarto limpo e arrumado, G.H. depara-se com uma barata na porta do armário. Depois do susto, ela esmaga o inseto e decide provar seu interior branco, processando-se, então, uma revelação. G.H. sai de sua rotina civilizada e lança-se para fora do humano, reconstruindo-se a partir desse episódio. A protagonista vê sua condição de dona de casa e mãe como uma selvagem. Clarice escreve: “Provação significa que a vida está me provando. Mas provação significa também que estou provando. E provar pode ser transformar numa sede cada vez mais insaciável.”
Análise:
A Jornada pelo Autoconhecimento no livro "A Paixão Segundo G.H.", de Clarice Lispector
Thiago Maia

"Perder-se é um achar-se perigoso". (PSGH, p. 102)

No romance "A Paixão Segundo G. H.", de Clarice Lispector, presentifica-se uma jornada de autoconhecimento. Com o dito paradoxal "Perder-se é um achar perigoso", a personagem evidencia isso ao leitor, a mão que a sustenta. Quando G. H. sai do seu mundo (a organização que ela dava aos fatos da vida) e entra no mundo (o caos informe, o desconhecido), ela perde a falsa identidade que mantinha para os outros, a personalidade reificada, para enfim construir uma nova identidade mais autêntica, na qual ela entra em contato com os seus demônios interiores, desafia as normas sociais de bom comportamento e sente-se livre, absolutamente livre.

A descoberta-se de si tem paralelo com a descoberta do mundo, por isso a inscrição no Oráculo de Delfos: "Homem, conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo". Dentro do seu casco, dentro do seu universo familiar, G. H. se mantinha dentro dos limites de uma vida artificial, sem o contato íntimo com o seu "Eu profundo". Porém ao descobrir o quarto da empregada, que tinha uma organização diferente do resto da casa e gravuras estranhas na parede, G. H. inicia-se na descoberta do seu "Eu Profundo"a partir da sua relação com o Outro. Inicialmente ela rejeita a presença desse Outro, sente raiva da sua ex-empregada, mas quando descobre e amassa uma barata que estava no seu quarto, ela se sente como se estivesse penetrando numa "verdade oculta e infame". A partir dessa experiência, G. H. tem uma epifania, uma revelação despertada pelo reconhecimento da presença repentina do seu Ser em-si.

A viscosidade da barata, a sua ancestralidade, o seu caráter imundo e abjeto suscita um desejo de ir além, de penetrar no ser da barata, de descobrir a verdade da barata, que talvez fosse a verdade de si mesmo e do mundo. A personagem repensa toda a sua vida, o modo pelo qual se apresentou ao mundo, repensa o próprio Mundo e a existência. A angústia existencial perpassa todo o livro, e tal como em Sarte, há em Clarice Lispector uma afirmação da liberdade humana em meio ao absurdo da existência. Ao comer a barata G. H. afirma plenamente sua liberdade perante as normas sociais interiorizadas (o Super Ego) e perante ao Nada. Benedito Nunes já afirmava que o "desenvolvimento de certos temas importantes da ficção de Clarice Lispector insere-se no contexto da filosofia da existência, (..) partem da mesma intuição kierkegaardiana do caráter pré-reflexivo, individual e dramático da existência humana, tratando de problemas como a angústia, o nada, o fracasso, a linguagem, a comunicação das consciências".
O inferno de G. H. é justamente o de inserir profundamente no mistério da existência, refletir sobre si mesmo e sobre a vida em geral, buscando um sentido universal nessa sua experiência com a figura abjeta de uma barata. Em suma, ela busca o sentido do não-sentido. Sua personalidade fragmentária enreda-se em questões metafísicas conflitantes. Não há fronteiras nítidas entre o Eu e o Não-Eu, entre a parte e o todo. "É que eu olhara a barata viva e nela descobria a identidade de minha vida mais profunda", "Cada olho reproduzia a barata inteira". Os dois opostos são pares que se interelacionam dialeticamente. Ao comer a barata G. H. realiza a fusão do seu Eu com o ser da barata. Mais, ela inicia uma jornada rumo à uma experiência de integração entre o Eu e o mundo, entre o Ser Para-si e o Ser Em-si. Ao perder o seu Eu, G.H. encontra o "eu ser", a existência pura, que provém "de uma fonte muito anterior à humana e, com horror, muito maior que a humana". Sem o seu ego mundano, coisificado, G. H. entra e se diluí no mar da existência. A parte se perde e se acha no Todo. Realiza-se o que foi preconizado pelo Oráculo de Delfos: no seu enraizamento nos místerios da existência, na sua busca interior pelo autoconhecimento, G. H. acaba por conhecer "os Deuses e o Universo".

sábado, novembro 11, 2006

PARA UMA MENINA COMO UMA FLOR



PARA UMA MENINA COMO UMA FLOR

Vinicius de Moraes

Porque você é uma menina como uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, o que, aliás, você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado.

E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras. E porque você sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu cotidiano, e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre um nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, parecendo uma santa moderna, e anda lento, e fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der uma paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.

E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta e não concorda porque ele é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara-na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.

E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque vocêé a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, "Minha namorada", a fim de que, quando eu morrer, você, se por acaso não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse cantando sem voz aquele pedaço que eu digo que você tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois.

E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora - tão purinha entre as marias-sem-vergonha - a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nessas montanhas recortadas pela mão de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa. E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfrentando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobre tudo porque você é uma menina com uma flor.

Barata

Estava pensando, não tem como mais viver sem Clarice...
Depois de conhecer Clarice há quem consiga viver sem ela?
Não, não eu.
CLarice é arrebatadora, é um desenfreio, uma exposição do intocável...
Ela te revela, te suga, te agonia, te conforta...
Minha barata é o medo da solidão... não somente a solidão amorosa... a solidão em toda a sua ambivalência... eis também o porque o meu medo do silêncio e o porque de falar tanto...
Preciso provar do branco da barata...
Preciso...
Imputar-me-ei à solidão...
Não há como a solidão com tanto apoio...
não há...
Mas ela é possível... mas há saídas... preciso não ter saídas...
Essa é a nova luta...